Misturar ficção e realidade sempre foi uma característica marcante da teledramaturgia brasileira — e poucas novelas exemplificam isso como Que Rei Sou Eu?, exibida pela TV Globo em 1989. Criada por Cassiano Gabus Mendes e dirigida por Jorge Fernando, a trama se passou em um reino fictício, mas falava diretamente ao Brasil do fim da ditadura militar. Com sátiras políticas, críticas sociais e alusões a personagens da vida real, o folhetim se tornou símbolo do momento político do país — e, para alguns, teria até influenciado o resultado das urnas naquele ano.
É o que sustenta o sociólogo, jornalista e cientista político Bruno Filippo no livro Que Rei Sou Eu? – Política e novela no Brasil (Editora Topbooks). Ao analisar o impacto da obra no imaginário coletivo brasileiro, Filippo mostra como a novela desagradou tanto a esquerda quanto a direita: “A esquerda acusou a novela de ajudar a eleger Fernando Collor”, afirma.
O estudo nasceu em 2012, quando Filippo assistiu à reprise da novela no canal Viva. “Mesmo não sendo um noveleiro raiz, percebi que estava diante de uma obra singular”, diz. Segundo ele, o que diferencia Que Rei Sou Eu? de outras novelas com conteúdo político é o fato de que, nela, o contexto político é o motor central da trama — e não apenas um pano de fundo para romances e dramas pessoais.
Embora ambientada num reino europeu do século XVIII, a novela abordava temas que ressoavam diretamente no Brasil da década de 1980: corrupção, inflação, pobreza, exploração do povo, planos econômicos fracassados, conflitos políticos e até referências à Amazônia e ao FMI.
Com o fim da censura federal no período pós-ditadura, a Globo pôde enfim levar ao ar um projeto antigo — idealizado ainda na década de 1970, mas que fora vetado pelo clima repressivo que impediu, por exemplo, a primeira versão de Roque Santeiro.
Para Filippo, novelas com teor político têm poder de influenciar o imaginário popular, o que pode ser produtivo ou perigoso: “Podem conscientizar sobre os problemas do país, mas também podem induzir o espectador a aderir a uma corrente política específica”.
O caso de Que Rei Sou Eu?, segundo ele, chegou ao “paroxismo”. À direita, havia receio de que a novela incentivasse o povo a se rebelar contra os governantes. À esquerda, o incômodo era outro: a popularidade do personagem protagonista, vivido por Edson Celulari, teria favorecido Collor, recém-eleito presidente na primeira eleição direta pós-ditadura.
Apesar da crise de audiência que a TV aberta enfrenta hoje, Filippo acredita que as novelas ainda têm força para influenciar o debate político. No entanto, questionado sobre a possibilidade de um remake da trama, é cético: “Se em 1989 ela incomodou os dois lados, imagine hoje, em um país ainda mais polarizado”, conclui. Com Veja